O impacto ambiental do grande agronegócio é bem conhecido. O setor é responsável por um terço das emissões globais e representa a maior força motriz por trás do desmatamento. A nossa nova investigação revela o crescente impacto da agricultura industrial sobre os direitos humanos.

Comunidades pastoris tradicionais ocupam a terra de forma sustentável no Cerrado brasileiro há séculos. Atualmente, porém, a comunidade baiana de Capão do Modesto enfrenta ameaças de morte, violência e criminalização, com poderosos produtores agrícolas buscando despejá-la à força para que possam continuar a produzir monoculturas comerciais como soja e algodão, um modo de produção sabidamente prejudicial ao meio ambiente.

Nossa investigação revela que ADM, Bunge e Cargill, empresas globais de comércio de commodities, estão trabalhando com soja fornecida por produtores ligados a esses conflitos. Ao fazê-lo, essas empresas contribuem para o agravamento dos conflitos fundiários e para supostos abusos de direitos humanos, em flagrante violação de suas próprias responsabilidades para com as normas da ONU e da OCDE. 

Resistimos porque precisamos ficar em nosso território. Se entregarmos nossa terra para eles, vamos viver do quê? - Juscelino Santos Britto, fecheiro da comunidade de Brejo Verde

    Principais descobertas

  • Depoimentos, registros legais e boletins de ocorrência obtidos pela Global Witness demonstram uma campanha de intimidação contra a comunidade tradicional de Capão do Modesto e outras comunidades de fecho de pasto vizinhas.
  • Os membros das comunidades enfrentaram ameaças de morte, detenção arbitrária e destruição de bens comunitários. Segundo eles, isso foi feito por funcionários de empresas de segurança e outros indivíduos a mando dos produtores de soja.
  • Desde 2017, esses produtores buscam despejar a comunidade de Capão do Modesto de forma definitiva. Em uma ação judicial, eles caracterizam a comunidade como 'invasora' e destruidora do meio ambiente. Para a comunidade, o despejo significaria a destruição de seu modo de vida ancestral e a destituição de seus meios de subsistência.
  • Três das "quatro gigantes" globais do comércio de grãos – ADM, Bunge e Cargill – têm negociado com empresas de propriedade de alguns desses produtores, revela a Global Witness em sua investigação. Essas relações comerciais continuaram a existir enquanto a comunidade era assediada e ameaçada. Parte da soja das fazendas em questão é exportada para a Europa, inclusive sob um esquema de certificação de carbono "sustentável", reconhecido pelas diretivas da UE sobre biocombustíveis.

Conflitos fundiários no Cerrado

Cobrindo uma área de cerca de dois milhões de quilômetros quadrados – mais de 20% do Brasil –, o Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul, depois apenas da Amazônia. O crescimento do agronegócio em regiões de Cerrado, como o oeste da Bahia, fez a região ficar conhecida como a 'Fronteira da Soja'.

Os conflitos proliferaram com a busca frenética por terras produtivas nessa região de expansão agrícola, e as comunidades tradicionais e indígenas estão enfrentando uma pressão crescente, inclusive devido às chamadas compensações de reservas legais. Nesses casos, os produtores reivindicam uma área disputada como 'reserva legal', ou seja, área de vegetação nativa que a legislação brasileira exige que seja preservada para compensar o desmatamento feito para abrir espaço para a soja. Defensores como os de Capão do Modesto também enfrentam crescentes ameaças às suas terras e aos seus meios de subsistência tradicionais, incluindo violência e processos judiciais.

Sob pressão internacional – justificada e constante – para excluir o desmatamento de suas cadeias produtivas, as multinacionais de commodities estão priorizando as compras de fazendas já estabelecidas, mas não prestam a devida atenção aos conflitos fundiários e abusos dos direitos humanos. 

Enquanto a disputa por esse pedaço do oeste da Bahia se desenrola, as multinacionais continuam a atuar na área e possivelmente ainda lucram com o comércio de soja produzida em fazendas que criam dificuldades para as comunidades tradicionais.

Embora afirmem que a soja brasileira seja quase totalmente rastreável, nenhuma dessas multinacionais revela quais são seus fornecedores. Assim, o setor continua pouco transparente e sem prestar contas a ninguém. Apesar de haver políticas que supostamente comprometem essas empresas a defender os direitos humanos e fundiários em suas cadeias produtivas, nossa investigação revela deficiências estruturais de longa data e negligência na implementação dessas políticas.

Essas grandes empresas, todas com atuação na Europa, também estão expostas a um risco regulatório considerável, na medida em que a Comissão Europeia avança com um novo projeto de legislação para responsabilizar as empresas por suas cadeias de abastecimento. No futuro, as empresas que atuam na UE podem ficar cada vez mais sujeitas a processos judiciais e sanções por contribuírem para danos ao meio ambiente e aos direitos humanos. 

Recomendações 

A Global Witness e outros vêm denunciando o impacto negativo que ADM, Bunge e Cargill causam em biomas fundamentais para a manutenção do clima global e nas comunidades e defensores da terra e do meio ambiente. Apesar disso, essas empresas ainda não foram capazes de tomar medidas suficientes para regularizar suas cadeias produtivas.

  • A Coordenação de Desenvolvimento Agrário do Estado da Bahia (CDA) deve acelerar o processo de titulação de terras entre as comunidades de fundo e fecho de pasto para que elas consigam manter seus meios de subsistência sustentáveis que conservam o Cerrado, e publicar listas e mapas indicativos de todas as terras comunitárias tradicionais ainda a serem avaliadas para titulação, de modo a garantir a visibilidade dessas comunidades, enquanto seus processos de titulação estão em andamento;
  • A autoridade ambiental da Bahia, INEMA, deve assegurar que as comunidades tradicionais do Cerrado sejam devidamente consultadas sobre a inclusão de seus territórios no Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (CEFIR) e que seja possível impedir a validação de CARs que se sobreponham a esses territórios; e excluir as propriedades rurais sobrepostas a terras que a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) considerar sujeitas a reivindicações ou títulos de direitos fundiários comunitários concorrentes na hora de emitir licenças de desmatamento ou aprovar reservas legais;
  • O governo brasileiro deve reformar seus procedimentos de licenciamento ambiental e de propriedade, para que as propriedades rurais autodeclaradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) não possam ser validadas – por exemplo, no âmbito do Programa de Regularização Ambiental (PRA), alinhado ao Código Florestal – quando se sobrepuserem a terras reivindicadas ou tituladas por comunidades indígenas ou tradicionais;
  • O Supremo Tribunal Federal deve priorizar a resolução do processo ADI 5783-2017, no qual o Procurador-Geral argumenta que o artigo 3º (§ 2º) da lei estadual baiana 12.910/2013 é inconstitucional ao exigir um prazo para que as comunidades de fundo e fecho de pasto apresentem seus pedidos de titulação de terras.