Grandes marcas internacionais compram óleo de palma brasileiro proveniente de operações ligadas a violência, tortura e fraude fundiária.
É necessário que empresas internacionais e a União Europeia ajam com urgência para lidar com o aumento dos conflitos, da violência e dos danos contra comunidades indígenas e tradicionais da Amazônia brasileira que vivem cercadas de plantações de palma.
Às margens do largo rio Acará, no nordeste do estado do Pará – maior região produtora de óleo de palma do Brasil – a violência, a grilagem e o despejo forçado de comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e campesinas são uma realidade constante. Os conflitos no Pará se tornaram mais acirrados e mortais para os defensores da terra e do meio ambiente desde o início do governo de Jair Bolsonaro, sobretudo desde o início de 2022, quando as pesquisas eleitorais começaram a sugerir a derrota do atual presidente nas próximas eleições.
Ainda este ano, os brasileiros irão às urnas para escolher seu presidente e terão que decidir se endossam outro mandato de Bolsonaro. De acordo com líderes comunitários tradicionais, a mensagem pré-eleitoral de ‘deputados e outros funcionários do governo’ aos produtores locais de óleo de palma é clara: “executem todos que protestarem e criarem problemas até o fim de 2022”.
Duas gigantes brasileiras
do óleo de palma, a Brasil Biofuels
(BBF) e a Agropalma, estão envolvidas há anos em conflitos com as comunidades
locais. A BBF é acusada de usar da violência para silenciar comunidades
indígenas e tradicionais que defendem suas terras ancestrais, enquanto a
Agropalma está ligada a apropriações fraudulentas de terras e isolamento ou
remoção forçada de comunidades. Ambas adquiriram terras para lucrar com o
cultivo de palmas, aparentemente às custas dos direitos constitucionais de
comunidades tradicionais.
A Agropalma afirma que suas políticas corporativas
proíbem ações que inibam as atividades legais e regulares de defensores de
direitos humanos, mantendo o direito de proteger seus funcionários e seu
patrimônio. A empresa nega usar violência contra comunidades e indivíduos
mencionados neste relatório e afirma que não há reinvindicações por povos
indígenas de terras sobrepostas às terras da Agropalma.
A BBF reconhece a existência de um conflito em curso na região, que afirma estar tentando resolver. A empresa acredita ser vítima de ações criminosas contra seus funcionários, o que, segundo ela, já foi denunciado à polícia. A BBF nega causar ou pretender causar danos físicos a membros de comunidades. Afirma, ainda, que a segurança armada contratada por ela está instruída a agir de forma pacífica, respeitosa e de acordo com a legislação vigente. As respostas detalhadas das empresas estão descritas abaixo.
Grandes marcas internacionais – ADM, Bunge, Cargill, Danone, Ferrero, Hershey’s, Kellogg’s, Mondelez, Nestlé, PepsiCo, Unilever e outras – continuam comprando óleo de palma da BBF e/ou da Agropalma, apesar da situação no Pará, e assim contribuem para violações de direitos indígenas e de povos tradicionais. As respostas das empresas mencionadas estão também incluídas abaixo.
É urgente que a BBF, a Agropalma e todas as empresas que compram óleo de palma das duas gigantes tomem medidas para evitar novos ataques e danos às comunidades indígenas e tradicionais que convivem com a violência associada à produção de dendê nessa região. Isso inclui: acabar com o uso de guarda armada e garantir que funcionários e contratados das empresas ajam de acordo com a lei e não ameacem, de forma alguma, a segurança das comunidades.
Além disso, governos dos principais mercados consumidores devem tomar medidas para responsabilizar as empresas de acordo com as leis existentes, bem como adotar novas leis. Por exemplo, a histórica legislação proposta pela União Europeia (UE), que exige a realização de devida diligência (“due dilligence”) ambiental e de direitos humanos de forma mandatória, deve ser implementada com prioridade.
Dendezeiros na floresta
Em meados dos anos 2000, o governo federal incentivou a expansão do setor de óleo de palma, também chamado de azeite de dendê, no estado do Pará. A produção resultante dessa expansão é hoje amplamente utilizada na indústria de alimentose biocombustíveis. As plantações de palma no Pará cobrem atualmente 226.834 hectares, uma área quase do tamanho de Luxemburgo – grande parte da qual costumava ser mata nativa.
Duas empresas brasileiras dominam o setor local – Agropalma S/A e Brasil Biofuels S/A (BBF). Apesar de concorrentes, ambas teriam praticado ações brutais contra povos tradicionais que há séculos vivem e utilizam terras hoje adjacentes e sobrepostas às plantações de palma. A Constituição Federal de 1988 protege os direitos das comunidades indígenas e quilombolas às suas terras ancestrais.
Recentemente, Agropalma e BBF anunciaram ambiciosos planos de investimento em suas plantações. Porém, a realidade das comunidades que vivem estranguladas por essas operações é um pesadelo.
O violento conflito da BBF
A BBF afirma ser a maior produtora de óleo de palma da América Latina, com mais de 80% de suas plantações localizadas no Pará. Sua produção é de aproximadamente 200.000 toneladas de óleo por ano, mais de um terço do total da produção brasileira.
As propriedades da BBF no Pará estão majoritariamente localizadas na região de Acará e Tomé-Açu, vizinhas à terra indígena demarcada (TI) Turé Mariquita I e II, aonde vive o povo indígena Tembé. Também são vizinhas a terras reivindicadas pelos povos indígenas Turiuara e Pitauã e sobrepostas a terras reivindicadas pela comunidade quilombola Nova Betel, pelas comunidades quilombolas Turé, Vila Formosa, 19 do Maçaranduba, Monte Sião, Ipatinga-Mirim e Ipatinga-Grande (que juntas formam a associação Amarqualta – Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto-Acará), por comunidades ribeirinhas e campesinas de Vila Socorro, e por outras comunidades campesinas menores.
Desde o começo de 2022, os conflitos de terra na região vêm aumentando. Em abril de 2022, homens armados supostamente contratados pela BBF ameaçaram queimar viva a irmã de uma liderança indígena Tembé, Paratê Tembé.
Fui ameaçado... Uns carros estranhos me seguem para vários lugares, inclusive até a minha casa. Funcionários da BBF dizem que vão me matar, [e] minha família. - Paratê Tembé, 2022
Edvaldo Santos de Souza, liderança indígena Turiuara, fala sempre sobre as ameaças. “Funcionários da BBF usando o uniforme da empresa me pararam várias vezes para dizer que eu deveria ter cuidado e olhar para onde estou indo”, afirma.
Muitas das reivindicações
das comunidades têm sido apoiadas pelo Ministério Público do Estado do Pará
(MPPA) e pelo Ministério Público Federal (MPF). Em março de 2022, o MPF
emitiu uma declaração dizendo que as áreas de
plantio da BBF se sobrepõem às áreas reivindicadas pelo povo Tembé, em fase de
demarcação pela Funai, e que a BBF descumpriu acordos com os indígenas feitos
anteriormente pela Biopalma da Amazônia, empresa que era dona das terras no
local e que foi totalmente adquirida pela BBF. Sem uma zona de amortecimento,
as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e campesinas dizem que as
plantações de palma da BBF as estão estrangulando. A zona de amortecimento deve
ter pelo menos dez quilômetros de largura, segundo o MPF.
Essa situação é pior para as comunidades quilombolas cujas terras não foram demarcadas. “É um absurdo! Dia e noite eles abordam a gente em nosso território, na porta da nossa casa, bloqueiam nossas estradas... Nossa segurança tá comprometida pelo fato de nossa terra não ser demarcada”, afirma um membro da comunidade Nova Betel.
Longa lista de abusas
A Global Witness recebeu informações de contínuos abusos entre o final de abril de 2022 e o início de julho de 2022 atribuídos a homens armados que estariam agindo em nome da BBF.
- Grupos de homens armados bloquearam várias estradas ao redor de territórios indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
- Homens armados pararam e revistaram carros e motociclistas dizendo estar ‘à caça’ de lideranças indígenas e quilombolas.
- Homens armados torturaram membros de uma comunidade indígena derramando plástico derretido sobre suas costas.
- Homens armados atiraram e feriram pelo menos um membro de uma comunidade indígena, e vários foram obrigados a se deitar, foram humilhados e tiros foram disparados perto de suas cabeças.
- Homens armados obrigaram um quilombola e um adolescente que trabalhavam no campo a deitar no chão e dispararam tiros próximos às suas cabeças, causando graves problemas auditivos nas vítimas.
- Dia e noite, membros das comunidades são parados nas estradas, questionados e humilhados por funcionários da BBF e/ou seguranças.
A Global Witness estava na região quando alguns desses incidentes ocorreram e obteve informações sobre o que aconteceu diretamente de membros de comunidades que estavam no local. “Eles [homens armados] saíram daqueles carros grandes deles com outros homens usando uniformes da BBF atirando em todo mundo. Eles queriam assustar a gente e atingir mesmo”, lamenta um membro de uma comunidade indígena. “Cada dia é uma humilhação diferente; as pessoas estão sendo torturadas aqui! A gente está exausto. A gente vive em uma zona de guerra aqui. Fico feliz que o meu amigo não morreu com aquele tiro que pegou nele, mas não sei se as outras pessoas vão ter sorte assim quando isso acontecer de novo. Olha, eu tenho certeza que isso vai acontecer de novo.”
A BBF registrou mais de 550 boletins de ocorrência contra membros de comunidades, naquilo que o advogado indígena Jorde Tembé Araújo chama de “tentativas de criminalizar os protestos dos povos indígenas e quilombolas”. Tal afirmação já foi corroborada pelo MPF.
"Não queremos mais brigar com eles. Queremos eles longe da gente... Eles torturam a gente, matam a gente e, no final, nós que somos criminalizados pela sociedade." Edvaldo Santos de Souza, liderança indígena Turiuara, 2022
Depoimento prestado à polícia por um segurança terceirizado da BBF descreve como a empresa instruiu seus trabalhadores a criar falsas denúncias de roubo e outros crimes com o objetivo de incriminar indígenas. Após ser lembrado de que estava sob juramento, o segurança confessou que “não reconheceu nenhum índio [sic]” e que “não viu nenhuma pessoa armada”. Ele só disse que havia reconhecido os infratores como indígenas porque, segundo a autuação, “a empresa mandou” e que “trouxe tal texto para não ser prejudicado em seu emprego”.
As violações relatadas à Global Witness levaram alguns membros da comunidade a não acreditar mais na convivência com as empresas produtoras de óleo de palma. Contactada em abril de 2022, a BBF reconheceu a existência de um conflito em curso na região, que afirma estar tentando resolver. A empresa acredita ser vítima de ações criminosas contra seus funcionários, o que já foi denunciado por ela à polícia. A BBF nega causar ou pretender causar danos físicos a membros de comunidades. Afirma, ainda, que a segurança armada contratada por ela está instruída a agir de forma pacífica, respeitosa e de acordo com a legislação vigente.
A BBF trouxe o caos desde que começou aqui, mas esse ano ai as coisas estão ainda mais perigosas, tenho medo que as pessoas morram, fico preocupado que matem minha família, meus amigos. - Membro da comunidade quilombola Nova Betel, 2022
A Global Witness entrou
em contato com a BBF novamente em setembro de 2022 apresentando a ela alegações
mais detalhadas. A BBF respondeu alegando que alguns incidentes ocorridos em
abril de 2022, como a suposta destruição da sede de uma de suas fazendas, Fazenda
Vera Cruz, são provenientes de “ações criminosas” cometidas por indígenas e
quilombolas, incluindo vandalismo e incêndio criminoso, em retaliação à
interceptação de frutos de dendê que, segundo a empresa, haviam sido roubados
por membros das comunidades. Jorde Tembé Araújo, representante legal da
comunidade indígena Tembé, afirma que os alegados danos à Fazenda Vera Cruz são
provenientes de um momento de conflito e que podem ter sido causados por
qualquer uma das partes envolvidas.
As comunidades sustentam que essa ação foi uma resposta à apreensão, pela BBF, de frutos que pertenciam às comunidades – legitimamente cultivados em pequena escala em terras comunitárias (não em terras da BBF) – e ao suposto uso de munição pela empresa contra membros das comunidades, conforme relatado pela mídia na época.
Líderes comunitários entrevistados pela Global Witness sobre esta e outras alegações da BBF em resposta a este relatório reconhecem que alguns membros das comunidades – que eles dizem não representar os interesses da maioria – tentam lutar contra a suposta violação de seus direitos pela BBF. A BBF também atribuiu vários incidentes contra seus bens e funcionários a um indivíduo, Adenísio dos Santos Portilho. Esse indivíduo, membro de uma comunidade auto reconhecida como Turiuara, pode estar enfrentando possíveis acusações criminais. Representantes de comunidades indígenas e quilombolas entrevistados pela Global Witness afirmam que ele não representa suas comunidades e que não toleram ações alegadamente cometidas por ele.
Evidências de vídeo e fotos relacionadas a esses e outros incidentes fornecidas pela BBF e pelas comunidades, e revisadas pela Global Witness, sugerem que, embora haja conflito violento envolvendo ambos os lados, no geral, os funcionários da BBF e as pessoas que atuam para a BBF aparecem em maior número em relação aos indígenas e membros de comunidades quilombolas e que, de fato, houve ataques violentos contra membros de comunidades tradicionais.
Agropalma, grilagem de terras e comunidades ilhadas
Ao dirigir por uma sinuosa estrada de terra que se inicia em Tomé-Açu, cruzando a balsa Acará-Tailândia, dendezeiros se estendem até onde a vista alcança. No entanto, é outra grande empresa produtora de óleo de palma que domina a paisagem.
A Agropalma atua no Pará desde a década de 1980. A empresa produtora de óleo de palma faz parte do poderoso conglomerado brasileiro de bancos e empresas Grupo Alfa. Com faturamento de R$ 1,4 bilhão (aproximadamente US$ 270 milhões) em 2020, a empresa é capaz de produzir cerca de 170.000 toneladas de óleo anualmente, que são destinados principalmente às indústrias alimentícia e cosmética, e pretende aumentar a produção em 50% até 2025.
A empresa controla 107.000 hectares de terras, equivalente a 150.000 campos de futebol, na região de Tailândia. Acredita-se que as plantações e reservas legais da Agropalma se sobreponham a terras reivindicadas pelas comunidades quilombolas de Balsa, Turiaçu, Vila do Gonçalves e Vila dos Palmares do Vale Acará (que juntas formam a associação ARQVA – Associação dos Ribeirinhos, Quilombolas, Agricultores Familiares e Pescadores do Vale Acará). A Agropalma confirmou para a Global Witness que quase todas as terras que a ARQVA reivindica se sobrepõem às suas reservas legais. No entanto, sustenta que nenhuma terra reivindicada por indígenas se sobrepõe às áreas da Agropalma.
A Agropalma é acusada de adquirir terras com registros ilegais aonde historicamente viviam povos tradicionais, indígenas e quilombolas, que foram expulsos dali. Essas questões se arrastam há quase 50 anos, de acordo com documentos legais do MPPA.
Raimundo Serrão tem 62 anos e é um quilombola domiciliado na Vila dos Palmares. Seus pais eram descendentes de pessoas previamente escravizadas, fugidos de um regime de escravidão por dívida, que migraram para a baía do rio Acará no início de 1900. Essa área está agora na posse da Agropalma. “Depois de anos de uma vida feliz na beira do rio, um grileiro que planejava vender nossas terras para a Agropalma entrou na nossa casa com outros três homens armados oferecendo um valor pequeno para o meu pai em troca da terra… isso aconteceu lá no final da década de 70”, lembra. “Se a gente não tivesse aceitado o acordo e saído de lá, o grileiro e os capangas dele teriam matado nós tudo.”Respondendo à Global Witness, a Agropalma afirmou que não apoia o comportamento e as práticas alegadas no caso de Raimundo Serrão, citando políticas que exigem uma análise rigorosa da legitimidade do uso da terra. A empresa afirma ainda que reconhece e respeita o direito das comunidades tradicionais e povos indígenas e tradicionais às suas terras e não ocupa essas áreas.
Muitas dessas comunidades foram submetidas à grilagem de terras que expulsou seus donos históricos. Milhares desses hectares foram posteriormente adquiridos pela Agropalma. Tribunais e promotores brasileiros concluíram que houve aquisição fraudulenta de terras no Pará após processos movidos pelo MPPA contestando a propriedade de áreas ocupadas pela Agropalma.
Em agosto de 2020, o tribunal de primeira instância deferiu parcialmente os pedidos do MPPA. O tribunal reconheceu que os documentos originais de aquisição das terras posteriormente adquiridas pela Agropalma eram falsos, e os registros das fazendas foram anulados e cancelados. No entanto, para surpresa e insatisfação das comunidades, a Agropalma continua possuindo e explorando as áreas. A Justiça permitiu que a Agropalma continuasse tentando regularizar os registros por meio de processo administrativo instaurado no Instituto de Terras do Pará (ITERPA).
A Agropalma afirma que suas terras foram adquiridas de boa fé de proprietários e possuidores legítimos, inclusive com a comprovação da documentação pelos órgãos competentes no momento da aquisição. A empresa atribui as irregularidades a “falhas notariais” que comprometeram a legitimidade da documentação de alguns imóveis rurais, o que afirma estar tentando regularizar junto às entidades competentes.
“É um absurdo ver como a Justiça deixa que essa empresa continue aqui, a própria Justiça já disse que os registros eram falsos... A Agropalma é a lei aqui”, diz Manoel Barbosa dos Santos, que tem processos reivindicando terras da família. A Agropalma recorreu da decisão, mas os recursos foram negados pelo tribunal de segunda instância. Enquanto as comunidades locais aguardam o cumprimento da decisão, elas afirmam que a Agropalma está travando uma guerra para silenciá-los.
José Joaquim dos Santos Pimenta, presidente da associação ARQVA, disse à Global Witness que é constantemente ameaçado pelos funcionários da Agropalma. “Os carros da empresa costumam parar na frente da minha casa para me vigiar. Seguranças armados que trabalham na Agropalma me disseram muitas vezes que preciso falar menos, senão eles vão ter que me calar. Eles usam segurança armada para nos intimidar.” A Agropalma respondeu à Global Witness afirmando que nenhum dos vários estudos de impacto social de suas operações levantou a presença de comunidades indígenas ou quilombolas no entorno das plantações, os estudos também não identificaram que a Agropalma teria removido ou incentivado remoções desses povos de suas terras.
Nas comunidades quilombolas de Vila Gonçalves e Balsa, 206 famílias se sentem totalmente estranguladas pelas plantações de palma ao seu redor. De acordo com os membros das comunidades, a Agropalma registrou as terras em que vivem, caçam, pescam e plantam para sua sobrevivência como ‘reservas legais’, áreas que os proprietários rurais são obrigados a proteger em suas terras para manter a vegetação nativa. A legalidade desse registro de terras está sendo investigada pelo Ministério Público do Estado do Pará. Para acessar as cidades próximas, os membros das comunidades não têm escolha a não ser atravessar estradas de terra dentro das plantações de palma.
A empresa tomou medidas para restringir à força o acesso das comunidades: valas profundas foram cavadas para dificultar a circulação e agora os indivíduos precisam passar por portões – considerados ilegais por um tribunal – construídos pela Agropalma; devem também apresentar carteira de identidade aos funcionários da empresa para atravessar as plantações; familiares, amigos e – em pelo menos uma ocasião – até mesmo uma ambulância do hospital local precisaram pedir permissão à empresa para passar.
O histórico cemitério de Nossa Senhora da Batalha, local importante para a fé das comunidades, também é local com acesso restringido pela empresa, fato que Serrão considera uma humilhação particular. De acordo com relatos da comunidade, a Agropalma também proíbe moradores de Balsa e Vila do Gonçalves de caçar, plantar para subsistência e pescar, alegando que seu território, como reserva legal da empresa, não pode ser degradado. Redes de pesca foram destruídas e pessoas foram humilhadas ao atravessar o rio ou tentar caçar, privando as famílias de seus meios de subsistência.
"É uma humilhação constante. Eu me sinto uma pessoa escravizada, como meus antepassados já foram, porque quando temos permissão para ir para lá, os funcionários da Agropalma ficam atrás de nós o tempo todo apontando armas enquanto tentamos rezar pelos nossos mortos e limpar os túmulos." Raimundo Serrão, líder quilombola da ARQVA, 2022
Em janeiro de 2022, o MPPA apresentou uma recomendação formal à Agropalma para que a empresa deixasse de restringir o acesso das comunidades às suas terras. O MPPA também protocolou ação contra a Agropalma no mês seguinte. Essa ação não irá adiante devido ao recente acordo de mediação assinado entre a empresa e as comunidades, documento visto pela Global Witness.
Respondendo à Global Witness, a Agropalma defendeu a abertura de valas como medida necessária para proteger suas reservas legais, mas afirma que as trincheiras já foram removidas. A Agropalma observou que, como detentora de ‘reservas legais’, a empresa é responsável por manter a proteção dessas áreas contra o desmatamento e a caça ilegal, por exemplo, sob pena de multa ou sanção. A Agropalma afirma, ainda, que as restrições de acesso foram decididas em conjunto e redigidas em acordo de 17 fevereiro de 2022. A Agropalma nega restringir o acesso ao cemitério Nossa Senhora da Batalha. Afirma que cumpre o acordo firmado com a ARQVA para permitir o acesso às pessoas que fazem parte de uma lista fornecida pela Associação em junho deste ano. Apesar do acordo, os membros das comunidades relatam que a situação não mudou e eles ainda estão sendo ameaçados.
Os órgãos reguladores do setor parecem ignorar a gravidade desses conflitos fundiários. A Agropalma é certificada pela iniciativa voluntária do setor, a Roundtable on Sustainable Palm Oil (RSPO). Desde 2016 – quando a RSPO publicou seu último relatório – o órgão afirmou que a Agropalma não tinha nenhum histórico de conflitos não resolvidos. Os membros das comunidades consultados pela Global Witness não se lembram de terem sido questionados por uma empresa de certificação que atua para a RSPO ou se houve alguma investigação nas terras da Agropalma. A RSPO respondeu que atualmente não há reclamações ativas contra a Agropalma. Em 2020, o Painel de Reclamações da RSPO indeferiu uma reclamação contra a empresa, citando a disputa de terras como matéria de competência dos tribunais brasileiros.
Sofrendo ataques diários, o presidente da ARQVA, Pimenta, diz não ter medo. Ele acredita que, se for executado, outros lutarão em seu lugar. “A luta não vai terminar até que a gente possa voltar pra nossa terra.”
Eleições presidenciais de 2022
O governo Bolsonaro tem favorecido os interesses empresariais em detrimento dos defensores da terra e do meio ambiente, principalmente das comunidades indígenas e tradicionais. Como presidente, Bolsonaro fez declarações e implementou medidas com o objetivo de desmantelar as políticas ambientais e privar as comunidades tradicionais de seus direitos.
Ao assumir o cargo, Bolsonaro prometeu que nenhumanova terra seria demarcada para comunidades tradicionais – promessa que cumpriu com sucesso. Sob o governo Bolsonaro, as instituições que protegem os direitos das comunidades tradicionais perderam força e tiveram seu orçamento reduzido.
A posição do Governo Federal em relação aos direitos dos povos tradicionais e à demarcação de terras afeta diretamente a situação no nordeste do Pará. “Funcionários do governo estão aconselhando empresas e produtores de nossa região a ‘se livrar’ daqueles que estão criando problemas antes que outro presidente assuma”, relata uma liderança indígena de Tomé-Açu. Essa é a mensagem que produtores de óleo de palma das regiões de Acará, Tomé-Açu e Tailândia estão recebendo, acreditam indígenas e quilombolas.
A BBF conta com o apoio de um poderoso representante na Assembleia Legislativa do Pará, o Deputado Caveira, que apoia abertamente a candidatura de Bolsonaro. Em um vídeo em que se dirige aos funcionários da BBF, o deputado afirmou que “onde a justiça não alcança, a pólvora tem que alcançar", e que por isso o presidente Jair Bolsonaro quer que homens como eles [funcionários da BBF] tenham permissão para portar armas. O Deputado Caveira não respondeu aos nossos pedidos de comentários.
Independentemente de quem vença as eleições presidenciais de outubro de 2022, será essencial reconstruir instituições governamentais que protegem comunidades tradicionais, demarcar terras, aumentar o monitoramento e garantir a responsabilidade corporativa – tudo isso paralisado no governo atual – para proteger a vida dos defensores da terra e do meio ambiente.
Considerando o ambiente político atual, desfavorável aos defensores da terra e do meio ambiente, e o fato de que os conflitos no Pará dificilmente cessarão mesmo que Bolsonaro perca as eleições, aqueles que contribuem para violar os direitos humanos devem ser responsabilizados.
Grandes marcas internacionais que compram óleo de palma ligado a abusos de direitos humanos
A Global Witness perguntou a membros de comunidades tradicionais se eles sabem para onde vão os frutos dos dendês que cercam suas terras. Ninguém soube responder. Então, para onde vão? O óleo de palma produzido pela Agropalma e pela BBF não consumido domesticamente é levado para a Europa, Estados Unidos e países da América Latina como México, Colômbia e Paraguai por empresas americanas e europeias. O óleo de palma é comprado por comerciantes multinacionais de commodities, incluindo ADM, Bunge e Cargill, e grandes marcas como Danone, Ferrero, Hershey’s, Kellogg’s, Mondelez, Nestlé, PepsiCo e Unilever, de acordo com as listas de fornecedores de óleo de palma publicadas pelas empresas (“mill lists”).
A Global Witness identificou 20 (vinte) empresas que compram, direta ou indiretamente, da BBF e da Agropalma, com base em suas listas de fornecedores ou informações públicas disponíveis em sistemas de dados comerciais.
Na Europa, América do Norte e outras regiões, consumidores que bebem Pepsi, comem cereais matinais produzidos pela Kellogg’s ou saboreiam chocolates da Mondelez, Hershey’s, Ferrero e Nestlé podem estar consumindo óleo de palma produzido no Pará às custas da expropriação violenta dos meios de subsistência dessas comunidades.
Em abril
de 2022, a Global Witness entrou em contato com a BBF depois que os supostos
incidentes violentos que teriam ocorrido no mesmo mês nos foram relatados.
Também entramos em contato com grandes marcas que estariam comprando óleo de
palma da BBF. Em setembro de 2022, a
Global Witness entrou em contato com a BBF, Agropalma e empresas compradoras de
óleo de palma das duas produtoras buscando comentários sobre as alegações
feitas neste relatório.
A Cargill afirma que está ciente e preocupada com a disputa em Tomé-Açú e Acará, e que a BBF foi incluída em sua lista de reclamações (“grievance list”), mas acredita que a solução não é deixar de comprar da empresa. A Cargill afirmou ainda que um “plano de ação” está em vigor para garantir que a BBF cumpra a Política da Cargill sobre Óleo de Palma Sustentável, relatando que “a BBF está progredindo”. A Cargill informa que a Agropalma também “implementou um plano de ação para melhoria”.
Em abril de 2022, a Kellogg’s respondeu manifestando sua preocupação com as alegações das comunidades e reconhecendo a necessidade de ação. Posteriormente, relatou comunicação com a BBF, seu fornecedor indireto, e está copatrocinando um programa para apoiar a BBF em “métodos aceitáveis de gerenciamento de conflitos”. A Kellogg está monitorando o caso Agropalma.
A Ferrero afirmou que está dialogando com a Agropalma por meio de seu procedimento de gerenciamento de reclamações, observando que a Agropalma encomendou uma “avaliação independente … [pelo] Instituto Peabiru”. Também compartilhou uma avaliação de 2021 da Agropalma feita por uma empresa de certificação, que declarou que “desde que o procedimento de reclamações e queixas foi estabelecido não houve registro de conflitos com as comunidades” e que “as áreas da Agropalma e dos produtores parceiros são privadas e não estão em áreas de comunidades.”
A Mars informou que começou a dialogar com a Agropalma em março de 2022 e contatou a empresa novamente após o pedido de comentários da Global Witness, pedindo mais esclarecimentos e incentivando a empresa a investigar as alegações. Em parceria com a Verite, a Mars apoia a Agropalma na realização de trabalhos específicos para desenvolver mecanismos que absorvam reclamações das comunidades e na gestão de reclamações.
A Nestlé respondeu à Global Witness que considera sérias as alegações sobre a Agropalma e a BBF. A Nestlé informou que entrou em contato com a Agropalma para investigar e incentivá-la a abordar a situação com as comunidades locais e que realizará auditorias de fornecimento. A Nestlé entrou em contato com o fornecedor de nível 1 que compra óleo de palma diretamente da BBF, relatando que esse fornecedor está trabalhando em um plano de ação com a BBF para resolver a situação.
A AAK observou que entrou em contato com sua fornecedora indireta Agropalma buscando comentários; contatou seus fornecedores diretos que compram diretamente da Agropalma; e contratou prestadores de serviços de sustentabilidade para avaliar as alegações.
Citando sua Política de Óleo de Palma Sustentável e Processo de Qualificação de Fornecedores, a Bunge respondeu que todas as suas operações comerciais com fornecedores “são legais e em conformidade com a legislação brasileira e os procedimentos da empresa”. Ela afirma estar monitorando o caso da Agropalma.
A Hersheys obtém óleo de palma da Agropalma e da BBF indiretamente por meio dos comerciantes Cargill e AAK. A Hersheys está monitorando a situação da BBF por meio do sistema de investigação de reclamações da Cargill. A Hersheys também iniciou uma investigação de reclamações sobre a Agropalma com a AAK e a Cargill.
A Unilever informa que está realizando uma avaliação detalhada da situação envolvendo a Agropalma e citou sua Política de Compras Responsáveis e sua Política de Pessoas e Natureza. Ela obtém óleo de palma da BBF indiretamente e informa que está contatando seu fornecedor direto que obtém óleo de palma da BBF para investigar as alegações.
A Upfield afirmou que não compra óleo de palma da BBF; sua lista de fornecedores de óleo de palma mais recente menciona a Agropalma. Em linha com suas políticas e procedimentos, a Upfield disse que revisaria as questões levantadas neste relatório e envolveria seus fornecedores diretos em seu processo trimestral de engajamento de fornecedores, se necessário.
Embora essa seja a nossa terra e a gente more aqui há gerações, os únicos que lucram com esses danos são as grandes empresas. - Paratê Tembé, liderança indígena, 2022
A General Mills respondeu que está rastreando as alegações contra a BBF e a Agropalma por meio de seu processo de reclamações, citando seu programa de Compras Globais Responsáveis e Código de Conduta do Fornecedor.
A Danone afirmou que obtém óleo de palma indiretamente da Agropalma, chamando as alegações de indesculpáveis e extremamente alarmantes. A empresa iniciou uma investigação por meio de seu mecanismo de reclamações para tratar do assunto com o objetivo de trabalhar com sua cadeia de suprimentos para resolver ou suspender as atividades.
A Pepsico diz não possuir comentários formais a respeito das alegações. A empresa está analisando as informações, verificando se possui links de fornecimento com a BBF por meio de seus fornecedores diretos e dialogando com a Agropalma sobre as alegações.
As empresas ADM, incluindo Stratas Foods e Olenex, Friesland Campina, Mondelez, Olvea e PZ Cussons, não responderam aos pedidos de comentários da Global Witness.
Os conflitos fundiários ligados às operações da BBF e da Agropalma, que já ocorrem há anos, estão aumentando. Enquanto pessoas são torturadas e membros de comunidades vivem com medo constante de serem executados, BBF e Agropalma continuam a lucrar e comercializar internacionalmente com algumas das maiores marcas do mundo.
Apelo urgente para evitar mais violência e outras agressões
As práticas internacionais de empresas e direitos humanos exigem que as empresas identifiquem, previnam, mitiguem e reparem as violações de direitos humanos relacionadas às suas operações, incluindo quaisquer abusos decorrentes de suas cadeias de suprimento.
Marcas globais que compram óleo de palma produzido em áreas ligadas a violações de direitos humanos estão deixando de cumprir suas responsabilidades de prevenir abusos de direitos humanos e outros problemas graves em suas operações e cadeias produtivas.
O fato de todas as empresas multinacionais que responderam à Global
Witness afirmarem estar cientes dos conflitos em suas cadeias de fornecimento
de óleo de palma brasileiro e, mesmo assim, continuarem comprando óleo de palma
da BBF e/ou da Agropalma indica que elas fracassaram completamente na prevenção
ou mitigação dos abusos de direitos ocorridos nessa região do Pará.
A Global Witness solicita que as empresas AAK, ADM, Bunge, Cargill, Danone, Ferrero, Friesland Campina, General Mills, Hershey’s, Kellogg Mondelez, Nestlé, Olenex, Olvea Vegetable Oils, PepsiCo, Stratas Foods, Unilever e Upfield ajam imediatamente para:
- Garantir que a BBF e/ou a Agropalma evitem, de forma urgente, quaisquer danos adicionais aos membros de qualquer comunidade dentro ou ao redor de suas plantações de palma; e rescindir contratos com elas, caso ainda não tenham feito
- Tomar todas as providências necessárias para remediar os danos já sofridos pelas comunidades
- Garantir que o óleo de palma seja adquirido apenas de fornecedores que sigam os padrões internacionais de empresas e direitos humanos
Em fevereiro de 2022, a Comissão Europeia divulgou um projeto de lei para promover a responsabilidade corporativa, exigindo que as empresas avaliem seus impactos nas pessoas e no planeta. A diretiva de devida diligência de sustentabilidade corporativa – se aprovada – exigirá que as empresas que atuam na UE identifiquem, previnam e mitiguem os riscos aos direitos humanos e ao meio ambiente associados às suas atividades e reparem os danos que tenham causado. Fundamentalmente, se aprovada, essa lei poderá responsabilizar as empresas nos tribunais europeus caso sejam encontradas irregularidades.
Embora a diretiva possa ser um divisor de águas no que diz respeito à prestação de contas por corporações, a Global Witness ressalta que o projeto deve ser fortalecido para proteger de fato as comunidades que sofrem com o abuso das grandes corporações. O projeto atualmente possui brechas e deficiências que podem permitir que as empresas continuem atuando como de costume, com poucas mudanças reais. Entre muitos problemas, a proposta não exige que as empresas se envolvam com as comunidades afetadas, incluindo defensores da terra e do meio ambiente. O projeto afirma apenas que eles devem ser consultados “quando relevante”. Com a crescente violência contra as comunidades afetadas, conforme mostrado neste relatório, é essencial que a legislação exija um envolvimento significativo com as comunidades impactadas e potencialmente impactadas como parte dos processos contínuos de devida diligência de uma empresa.
A Global Witness recomenda que a União Europeia fortaleça sua diretiva de devida diligência de sustentabilidade corporativa de acordo com as recomendações da sociedade civil, inclusive exigindo que as empresas se envolvam com as comunidades afetadas de maneira contínua, segura e inclusiva. Esse processo é essencial para garantir que abusos contra os direitos humanos e outros, como os que ocorrem nas operações da BBF e da Agropalma, sejam prevenidos e resolvidos.
Assista ao documentário A Sombra do Dendê aqui.
Em caso de discrepâncias ou dúvidas de interpretação, prevalece a redação do relatório em língua inglesa: Amazon Palm.